Tatiana Leskova

Tatiana Leskova



Nascimento:06/12/1922
Entrevista em  30 de Janeiro de 2012

Como você chegou ao Brasil e em que ano.
Foi com o Ballet Russo que eu cheguei aqui. Eu sei isso de cor, porque já falei tantas vezes.

Isso que dá ser muito importante. Depois em que circunstâncias começou a trabalhar no corpo de baile. Foi um convite?
Foi um convite. Mas isso eu vou contar direitinho.

Como era a rotina do corpo de baile?
Muito trabalho, muito mais do que agora.
Horário de entrada, saída, ensaios. Durante quanto tempo você participou do Ballet do Theatro Municipal. Você trabalhou na direção e também como remontadora. Foram duas funções.
Remontadora, coreógrafa...
Professora. Só faltava limpar o chão. (Risos) Fazia roupa de ballet porque não tinha.
Depois vamos perguntar sobre curiosidades significativas dessa rotina. Suas apresentações como bailarina dentro do Theatro, dentro do Corpo de Baile.
Dentro do Corpo de Baile, não. Como primeira bailarina. É diferente. Na realidade, eu tive sorte. No Ballet Russo eu não era Corpo de Baile.
Depois passei para a parte de maître. Como foi que você começou a trabalhar como maître de ballet, depois quais os ballets que você coreografou para o Corpo de Baile, quais as coreografias que você remontou.
Em primeiro lugar eu gostaria muito de agradecer a você, por você ter nos recebido.
O prazer é todo meu.

Então vamos lá. O nome completo.
Tatiana Leskova. Mas, na verdade, meu nome na certidão de nascimento é Tatiana Hélène Leskov.Eu nasci em Paris. E não fui eu que me registrei, foi meu avô que foi me registrar. A pessoa encarregada de escrever a minha certidão não entendeu como Leskova é feminino de Leskov. Não adiantou nada, eu tenho nome de homem, Leskov. E eu não sou nada Hélène, porque não fui batizada Hélène. Hélène é nome da minha mãe. E meu avô, no russo francês torto dele quis dizer “o nome da mãe e do pai”. E ao invés de falar sobrenome ele falou nome. Por isso é que eu sou Hélène, mas eu nunca fui batizada Hélène. Mas, como eu sou ortodoxa, eu posso usar só o nome com o qual eu fui batizada. E eu fui batizada como Tatiana. Eu nasci no dia 6 de dezembro, 1922, em Paris, França. No momento eu estou com 89 anos e caminhando, se Deus quiser, pra 90.

Como foi que você iniciou os seus estudos de ballet? Como e onde?
Eu iniciei meus estudos de ballet em Paris, porque eu vivia lá até a guerra. No início da guerra eu saí com o Ballet Russo para a Austrália. Mas eu vou voltar a sua pergunta. Minha mãe morreu tuberculosa, aos 32 anos. E eu tive uma pré-infecção tuberculosa aos 5. Então, quando minha mãe faleceu eu tinha 9 anos e meio. E, devido à parte psicológica e física – eu era magrinha, não tinha esse físico que eu tenho agora e que eu tive depois, adolescente. Minha mãe era muito alta, mas eu deixei de crescer, infelizmente. Estive no sanatório, etc, etc. A minha mãe faleceu em agosto, e no fim de setembro o médico recomendou que eu fizesse algum exercício físico para abrir a minha caixa toráxica, que era muito pequenininha, devia fazer ginástica. Meu pai – que quando era jovem, ainda estudante, na Rússia, em São Petersburgo – era muito fã de ballet, como todo estudante na época, porque era moda ser fã de ballet. (meu pai nasceu em 1892) achou melhor me colocar no ballet, para fazer exercício. Além disso, tinha a parte econômica. Nós não tínhamos um tostão, porque éramos refugiados, sem passaporte nenhum. Perdemos a nacionalidade russa. A nacionalidade era soviética. Os franceses não deram nacionalidade. Meus pais não tinham nacionalidade. Eu era apátrida. Mas acontece que, como eu nasci na França, aos 13 anos, quando comecei a ter que viajar com o "Ballet de la Genesse", que se chama Ballet da Juventude, eu precisava do passaporte. Optei pela nacionalidade francesa. Porque eu tinha nascido na França e tinha direito de optar. Eu sou francesa por opção, não por nascimento. Mas vamos voltar. Meu pai tinha um grande amigo do tempo de São Petersburgo, o príncipe Troubetzkoy . Ele era casado com Liubov Egorova que era a primeira bailarina no Marinsky, casados depois que fugiram da Russia. Um nobre não podia casar com uma bailarina. Então eles casaram só depois que acabou o czarismo. Apesar de eles serem muito czaristas. Mas era lei, a bailarina não podia casar com um nobre. Quando dizem que casou com um nobre no tempo do Czar, é mentira, não podia. O marido ou a mulher tinham que renegar sua nobreza. Comecei com Liubov Egorova. Ela foi minha mãe do ballet. Porque eu não tinha mais mãe, minha mãe tinha morrido. E ela foi o meu dia, e graças a ela eu me formei, trabalhei e vivi da minha dança. Até que eu parei. Pra mim ela foi tudo, mais do que qualquer coisa, eu devo a ela tudo. Eu tinha uma base muito boa da escola do Marinsky. Que era de Vaganova. E Vaganova era dois anos mais jovem do que a minha professora, mas era da mesma escola. Era a mesma base, só que Vaganova organizou o método.  Porque lá, cada bailarina ensinava um pouco. Eram vários professores no Marinsky.  Cada professor dava um pouco o seu método. E as bailarinas tinham a base clássica e dinamarquesa. Porque Johansson foi aluno do Bournonville.
Quer dizer, todo o método russo não é russo. Ele é italiano, francês, dinamarquês e russo. Porque o russo pegou esses vários métodos, juntou e fez desse método o seu. O russo se mexe de uma maneira diferente, respira de uma maneira diferente, se movimenta de uma maneira diferente. Pode ser por causa da dança folclórica, muito mais cabeça, muito mais aplomb coisa que geralmente muitas vezes falta em outras escolas. Porque o aplomb é natural, na dança russa é assim. Você dança com o movimento, você usa muito a cabeça, muito o corpo, muito tronco. Dizem que na Rússia você dança assim, da cintura pra cima e trabalha da cintura pra baixo. Comecei a aprender a dança com madame Egorova. Mas acontece que fazia relativamente pouco tempo que madame Egorova tinha a academia dela. Academia é uma palavra muito grande, estúdio, em Paris. Só tinha adultos. Comecei a minha primeira aula com adultos. Só seguia os outros. Mas como? Porque eu tinha olho. Acontece que eu tenho que voltar para uma história muito diferente. Minha avó paterna tocava piano num estúdio de ballet. E como meu pai e minha mãe tinham se separado logo quando eu era pequenininha, e eu tinha uns dias para passar o fim de semana com o meu pai, eu ia no estúdio onde minha avó paterna tocava piano, sentava no chão e via. Eu tinha 4, 5, 6, 7 anos. Porque eu comecei com 9 anos e meio. Eu tinha a memória visual. Eu via as aulas cada sábado, ou quase. Então você sem querer sente alguma coisa.

Não deixa de ser uma educação. Você não fez, mas assistia.
Assistia sim. Eu me lembro que tinha barra, que tinha centro, mas os passos eu não tenho ideia nenhuma. Mas então, eu fiz a aula com Egorova durante alguns meses. E ela falou com um professor, (Nicolas Tremiov - confirmar nome) para me dar aula particular, de graça. Trabalhei com ele durante quase dois anos. Todo dia aula particular. Acho que, devido a isso, aula particular com um professor que tinha uma bagagem, ajudou bastante. Dois anos depois eu voltei para Egorova, que estava trabalhando com crianças da minha idade, eu tinha 11 anos talvez. Quando eu tinha 13 anos e meio teve o concurso para a Opera Cômica. Meu pai tava numa situação difícil de dinheiro. E Egorova, que era minha mãe, sabia que eu precisava trabalhar. E ela me fez concorrer. Eu fiz o concurso e passei em segundo lugar, mas como estagiária. Porque lá também não podia ser do Corpo de Baile antes dos 16 anos. E eu fiquei na Opera Cômica até uns 15 anos e meio. Quase dois anos. Até que eu entrei pro Ballet Russo. Com 16 anos. E saí com 22. O que eu aprendi na minha vida como profissional, tudo que eu sei, tudo, minha cultura da dança, cultura de pintores, da música, tudo veio do Ballet Russo. Cheguei aqui aos 22 anos. E aqui, você sabe como é, a gente não tem um campo muito grande, especialmente lá em 1945, ou 44. Muito árido.

E dos seus 16 anos até os 22 que você ficou no Ballet Russo...
Viajei o mundo todo. E eu vou mostrar pra vocês quantos ballets a gente dançava por ano, quantos espetáculos. É inacreditável. Porque, com o evento da guerra, eu voltei para o Ballet Russo em 1939. Março, abril, maio, junho, julho, Inglaterra, Londres. Voltamos para Paris no mês de julho. Fim de julho começou a guerra. E nós ficamos sem trabalho. E de lá, o diretor, na época da companhia, que voltou a ser diretor, depois de vários anos, nos levou para a Austrália. E nós ficamos na Austrália quase dez meses. Depois fomos para os Estados Unidos, ficamos dois anos. Depois desses dois anos teve Cuba e México. Uma greve dos bailarinos, e ficamos sem trabalhos durante cinco meses por causa dos bailarinos que fizeram greve. Um empresário cortou o contrato e vinhamos para cá. Fizemos uma segunda vez México, terceira vez e viemos de navio para o Brasil. Chegamos aqui em abril de 1942. Dancei no Theatro Municipal do Rio de Janeiro em abril de 1942.

E dessas viagens você já ficou aqui, ou não?
Não. Continuei com a Cia, eu era uma das primeiras figuras, eu adorava a Cia. Eu não deixei o Ballet Russo porque eu não gostava, para mim o Ballet Russo era a minha família. Como eu falei a minha educação, tudo. Mas só que Ania, minha melhor amiga, e eu pedimos uma licença de seis meses para ficar aqui no Brasil porque a guerra tinha acabado. Precisavamos ganhar dinheiro, e no Ballet Russo ganhávamos muito pouco. Era apenas para pagar hotel e comida, um vestido, nunca. Raramente um vestidinho. Muito pouco. Era tempo da guerra, não tínhamos subvenção nenhuma. Viviamos da renda dos espetáculos. Por isso que a gente chegamos a dar 320 espetáculos por ano. E eu vou mostrar pra você o livro. E nos últimos anos da guerra, de 42 a 46, nós demos quase 300 espetáculos por ano. Dançavamos terça, quarta, quinta, matinê e soarê (como eram chamados os espetaculos noturnos) já são quatro espetáculos. Sexta, sábado, matinê e soarê. Domingo, matinê e soarê. Segunda-feira descanso. São nove espetáculos por semana.  por isso se aprende. Aqui o pessoal não aprende o suficiente porque nunca tem muitos espetáculos. Com dez espetáculos dizem “Ai, que maravilha!”. Não, que é isso. Dançavamos todo dia, precisavamos ganhar para comer. Mas não tinha nenhum governo que estivesse nos sustentando. 

A última pergunta que eu tinha feito era como você começou a fazer ballet, quem foram os seus mestres.
Então, eu fui aluna da Egorova. Quando eu entrei para a Opera Cômica eu também fazia aula com a professora da Opera Cômica. Era Jean Schwarz. Ela era da família Schwarz. As sobrinhas dela foram primeiras bailarinas do teatro. Era a família Schwarz. O irmão, pai, todos eram bailarinos. Eles eram bailarinos também na Opera de Paris e na Opera Cômica. E professores também. E depois, quando eu voltei, depois que começou a guerra, que eu voltei pra Paris, eu fazia aula todo dia. Não era porque não tinhmos mais espetáculo que não íamos continuar fazendo aula. Durante as férias, em 1939, quando eu voltei de Londres, eu perguntei a Egorova, se eu podia fazer aula com alguém, porque ela ia ter quinze dias de férias. Ela me indicou com quem fazer aula. Então eu fiz aula com Nora Kiss e com Boris Kniazev, que foram professores conhecidos. Esses foram meus professores. Mas minha vida toda, mesmo bailarina profissional, mesmo depois dos 30 anos eu sempre aprendi. Eu acho que a gente aprende a vida toda. Porque depois que eu estive aqui eu tive aula com Veltcheck,que era um professor daqui, fiz aula com Zaraspe, com Schwezoff, Harald Lander, quando esteve aqui. E quando era férias, na época, o Theatro Municipal, tinha umas férias muito longas. Por causa do baile de carnaval. O mês de dezembro já parava porque tiravam a plateia, para fazer o baile de carnaval. Até o fim do carnaval não tinha nada. Então era quase três meses de férias. Ia pra Europa ou para os Estados Unidos estudar. Acho que uma bailarina profissional aprende a vida toda. Tem pessoas que fizeram dez aulas na vida e dizem “já sou bailarina”.

Então você falou que você ficou aqui seis meses nesse período de férias lá do Ballet Russo? Com licença?
Nós viemos para cá em 42. Fomos para a Argentina, Uruguai, Chile, Peru, Equador, Bolívia. Voltamos para Buenos Aires, ficamos no Colón dez meses, depois fizemos no Chile, voltamos para o Colón, e voltamos para cá em 1946 ???. Não, fomos para Montevidéu e voltamos pra cá em 1944 ??. Então fizemos temporada em São Paulo. Eu me lembro que em 1º de maio dançamos no Pacaembu, na frente do Getúlio. Tenho até uma fotografia, fazendo o prelúdio de Silphides. Viemos depois pra cá, e voltamos para São Paulo.  Na realidade tinha conhecido o Luiz em Buenos Aires, durante o tempo que estava no Colón. O secretário cultural da embaixada inglesa telefonou pra minha casa. Morava com minha amiga Ania, minha melhor amiga.Ele queria fazer uma visita porque tinha um amigo que queria conhecer as bailarinas. Falei que só tinha uma, porque Ania tinha saído pra ensaiar no Colón, e eu não estava nesse ballet, por isso estava em casa. Era um senhor, eu achei muito interessante, então eu conheci o Luiz, pronto. E quando voltei pra cá, em 1944, saí com o Luiz. E me ofereceram Copacabana Palace para dançar. Como a guerra tinha acabado precisávamos mandar dinheiro pra Europa, não tinha notícia nenhuma, Você não podia se corresponder. Soube que meu pai morreu dois anos depois, ele morreu em 1942 eu soube em 1944. Soube por uma conhecida. A pianista de Egorova era judia. Ela teve que fugir de Paris para o Sul da França. Lá era zona livre. Ela escreveu a alguém em Nova York que o meu pai tinha falecido. E essa pessoa de Nova York conseguiu se comunicar com de Basil, que era o diretor pra dizer que o meu pai tinha morrido.  (pausa para um café).

Gostaria de saber como foi que aconteceu o seu contrato aqui com o Theatro Municipal.
A realidade foi que eu estava dando aulas, tinha um estúdio. E não acontecia nada no Theatro Municipal. O ano era 1947.

Quando você resolveu então ficar aqui no Brasil foi para dar aula?
Não, foi para dançar no Copacabana Palace, no Cassino. Com (Vaslav)Veltchek fazendo coreografia com Ania, eu e Tamara Grigorieva. As três que ficamos. Nós éramos, digamos assim, as “losers” do espetáculo. Fora cantores populares também. Mas dançar clássico, nós dançamos de "tutu" branco. Com uma lua na cabeça. Trabalhamos até o Copacabana Palace fechar. 
Por que que nós ficamos aqui? Isso também pode ser do interesse de vocês. Como a guerra tinha acabado, acompanhei o Ballet Russo. Ia voltar para Montevidéu e, dessa vez, em Buenos Aires não dançar mais no Colón, mas no teatro que chama Teatro Avenida. Voltar outra vez a fazer Santiago do Chile, Lima, etc. Tivemos uma oferta do diretor do Copacabana, Atalaia, para fazer três meses com opção de ir para seis. E pensamos: vai ser uma maravilha. Vamos ganhar dez vezes mais do que ganhavamos no Ballet Russo, ia poder mandar dinheiro para Europa. Sou cinco anos mais moça do que Ania. Agora eu sou muito segura de mim, mas na época eu não era. Ela foi falar com De Basil para pedir uma licença de três a seis meses para não ir com a Cia. Sabíamos que a Cia ia para as mesmas cidades que já tínhamos feito. Tinhmos uma oportunidade de ficar aqui e ganhar dinheiro. Eu, fora disso, tinha dois lados. Primeiro que eu precisava ganhar pra mandar pra fora, e também tinha, enfim, um romance, que era o Luiz. Quando se trabalha com o Ballet Russo, você encontra milhões de pessoas, mas como você muda de cidade o tempo todo, dava uns beijinhos e já tinha que ir embora. Não era como agora, que o pessoal "fica".  E o De Basil não deixou. O Atalaia ficou danado, porque, na estupidez, já tinhamos assinado o contrato. Na verdade, com o Ballet Russo não tinha mais contrato escrito. Porque, em tempos de guerra, você não sabe o que vai acontecer daqui a um mês, e o De Basil era muito esperto, não tinhamos contrato assinado. Trabalhávamos la porque era nossa casa, nossa família. Mas legalmente não tinha nenhum vínculo. E ele não deixou. O Atalaia ficou furioso, disse que ia apanhar um advogado. De Basil queria forçar a nossa volta, enfim, foi um problema quase político. Fomos para São Paulo e de lá o advogado arranjou um esquema para ter nossos passaportes de volta, não tínhamos documento nenhum. Nossos documentos estavam com De Basil. Ele fazia os vistos, não nos ocupávamos disso. O advogado falou para falarmos bem alto em russo para o pessoal não saber que idioma a gente estava falando. E nós fomos interpelar para a polícia, mas era um truque. E fomos levadas a polícia. Pediram documentos. Nós dissemos: “Nós não temos documentos. Estão com o diretor”. Então telefonaram para o De Basil que estava aqui no Rio, e o advogado dele foi levar nosso passaporte. Quando trouxeram os passaportes para a delegacia, o delegado disse: “Pronto, agora vocês fazem o que quiserem, toma.” Então fomos embora. Fugimos, nos escondemos, porque o De Basil estava atrás da gente. Tinham pessoas que nos esconderam durante alguns dias, porque a Cia ficou em São Paulo esperando que a gente voltasse. Iamos para Montevidéu de trem especial. Viajávamos de trem especial com roupa, cenário, às vezes até orquestra, dependendo. Depois de alguns dias eles foram embora mas a gente não podiamos ficar aqui, nosso visto era visto coletivo. O que fazer? Não podíamos ficar aqui e tinhamos assinado o contrato. Procuramos ver quem podia nos dar um visto. Podia ir pra Cayenne. Mas o cônsul francês disse que não ficava bem duas moças irem com visto pra Cayenne, era o lugar que mandavam todos os prisioneiros. Agora não existe mais, é na Guiana Francesa. A Flor de Oro Trujillo, que era filha do Trujillo, o ditador, nos arranjou visto permanente pra San Domingo. Mas quem que ia pra San Domingo? Ninguém. Mas com esse visto de San Domingo fomos para o Paraguai. No Paraguai o cônsul brasileiro nos deu o visto. Voltamos do Paraguai e tinha quatro dias para fazer o show. Tinhamos 20 e poucos anos, essas coisas só com essa idade a gente faz. Quem nos levou para o Paraguai, talvez você jê tenha ouvido falar, Leda Iuque. O marido dela que era o Caribé (da Rocha), era o secretário do Ataiala. Quando chegamos aqui, o Dutra (Eurico Gaspar Dutra,presidente do Brasil na época) fecha o Copacabana e todos os cassinos. Tinha começado a dar aula. Dançavamos uma vez por dia no Copacabana Palace. Fazia aula com Veltchek e dava aula num pequeno estúdio na Clínica Santa Mônica. Consuelo Rios começou a fazer aula comigo lá. Abri uma academia, em 1945, em 1947 já tinha umas alunas relativamente boas. Por exemplo, Maria Angélica, que foi da escola de dança, mas fazia aula comigo, Beatriz Consuelo, que tinha vindo do sul, a Lorna Key, que estava aqui, mas já tinha sido profissional. Ela tinha viajado com o Ballet Russo e voltou. Com algumas alunas minhas, criei um grupinho de 17 pessoas - Arthur Ferreira, Johnny Francklin, Dennis Gray, Edmundo Carijó, David Dupré  chamado Ballet Society. Mas não tinha nada a ver com “sociedade”. O pessoal levava isso como se fosse “a sociedade”. Era “society” porque nós éramos uma corporação. Nós trabalhávamos no Teatro Fênix, que era uma maravilha de teatro, parecia o Municipal, pequeno. Na Rua Almirante Barroso. Lindo, tinha mais um andar que o Municipal. Em 1948 eu fui embora para a Suíça com o Luiz que ficou doente. Em 1949, Mário Conde, que era o cenógrafo do Theatro Municipal, veio me propor fazer alguma coisa no Theatro Municipal. Assim entrei no Theatro Municipal como contratada por dois anos. Mas vim como diretora do Corpo de Baile e professora. Fazia tudo, fazia as óperas, o ballets, remontava. Não dançava, comecei a dançar depois que eu fui funcionária pública. Porque não dava. Eu tinha tanta ópera. A primeira coisa que eles me fizeram fazer quando eu fui contratada foi Opera Fausto. E eu nunca tinha visto a Opera Fausto. E Fausto tem dois ballets. No primeiro ato tem a valsa que não acaba nunca e tem a “Noite de Walpurgis”. Foi uma das minhas primeiras coreografias, eu nunca tinha visto a ópera antes. O meu trabalho no Theatro Municipal também foi um estudo, um aprendizado, natural. Chegamos a fazer 14 óperas por ano. Todas as óperas tinham ballet. Não é como agora que cortam os ballets. Agora também o Corpo de Baile não quer dançar na ópera, porque acham ruim. Mas eu acho péssimo. Eu acho que os novos que saem da escola de dança têm que fazer ópera. Você aprende tanto. De 1950 a 1952 eu fui contratada. De 1952 em diante virei funcionária pública.
Não era exatamente diretora, fui diretora depois coreógrafa convidada, cada vez mudava. Maître de ballet diretora. Cada vez com cada contrato, porque era de dois anos o contrato. Depois passei a coreógrafa assistente, maître de ballet, diretora artística, conselheira artística. Cada vez mudava, porque, com a Lei 14, com Lacerda, tirou a direção do Corpo de Baile. Achei que era totalmente certo. Ele achava que não podia ser um diretor permanente, que tinha que ter uma alternância. Se, por exemplo, não prestasse, pudesse acabar o contrato. O que é totalmente certo. Mas a prejudicada fui eu. Eu perdi o título. Eu passei a regente, depois passei a professora de arte, porque como eu era funcionária pública não tinha mais essa função.

Ópera é tão bom. Você aprende tanto!
É tão bom! Eu me lembro, eu na Ópera Cômica fazíamos muita ópera, era estagiária. Eu gostava, nunca me importei de fazer. No momento que você está no palco é uma satisfação.

Você poderia falar um pouco sobre quais foram as óperas que você coreografou?
As óperas? Vou ter que pegar pelo livro, porque isso eu não sei Os ballets eu posso dizer mais fácil. Que eu coreografei ou que eu remontei?

Nós vamos querer saber tudo, que você montou, que você remontou...
Bom, o primeiro ano eu remontei “O Príncipe Igor”. Isso em 1950. Eu coreografei “Variações Sinfônicas de Cesar Franck, um ballet que eu tinha já montado no Ballet Society. Fiz o “Prometeu” do Leopoldo Miguez, fiz “Bodas de Aurora”, “Danças Polovtsianas do Príncipe Igor”. Outra pessoa remontou, acho que foi a Berta (Rosanova), “Sonata ao Luar” do Schwezoff. “Lago dos Cisnes”. O Schwezoff tinha montado o “Lago dos Cisnes”, mas eu remontei também. Depois vários Pas de Deux: “Quebra-Nozes”, “Cisne Negro”, Dennis dançou “Dança do Sabre”, do Igor Schwezoff, “Dança Chinesa da Papoula Vermelha” também do Schwezoff, fiz um “Bregeiro” de Nazereth, todas essas coisas que estavam no “Bodas de Aurora”, que é a “Bela Adormecida” no último ato, também estavam separados. Também se fazia espetáculos que tinham Pas de Deux. Várias coisas. Todas as coreografias de Petipas, Fokine e Nijinska montadas por Tatiana Leskova. De 1951: “Stella de Circo”, música de Stinco, “Giselle” completo, foi a primeira vez no Brasil que se dançou “Giselle”, pelo corpo de baile, porque outras companhias fizeram. Fiz “Mascarade” de Khachaturian, fiz “Les Sylphides”, “Maracatu do Chico Rei” foi o Edy Vasconcelos, “Pas de Deux de Dom Quixote”, eu fiz “Ondine”, eu remontei “Pas de Deux de Beau Danube” de Bleu Strauss, coreografia de Massine, “Batuque” do Yuco, “Luta Eterna” de Schwezoff e “Coppelia” do Petipas – Cecchetti. Isso foi o que eu fiz em 1951. Em 52: “Sinhô do Bonfim”, Veltchek, “Papagaio do Moleque”, Veltchek, “Salamanca do Jarau”, Tatiana Leskova, “Quadros de uma Exposição” do Veltchek, “Les Presages (2º movimento)” remontado por mim e Leonid Massine, “Flocos de neve” do Quebra-Nozes, “Cisne negro” e “Danças Indígenas do Guarani”, foi o Veltchek. Em1953: Todos os ballets já mencionados. “Grand Pas de Quatre”, eu remontei. “Mefisto Valse”, montou Maryla Gremo, “Mancenilha” montou Madeleine Rosay. “Protée”, coreografia do David Lichine, fui eu que remontei. “L'après-midi d'un Faune” do Nijinsky, fui eu que remontei. “Composições Abstratas” montou Veltchek. Já estão com 34 coisas. Em 1954: montei “O Espantalho”, música de Mignoni, “Pedro e o Lobo” de Prokofiev. “Pas de Troi de Paquita”, coreografia Petipas e Balanchine. “Rondo Caprichoso” montou Marília Gremo, “Narciso” montou Verchinina. “Raymonda” eu remontei, coreografia de Petipas. “Bachianas Brasileiras”, Maryla Gremo. “Galope Moderno”, Dennis Gray. “Pavane” de Ravel, Veltchek. “Sete Pecados Capitais”, música de Ravel, Tatiana Lekova. “Rapsody in Blue” de Gershwin, coreografia Verchinina. “Bacanal de Thais”, Veltchek. “Danças Eslavas”, Veltchek. Em 1955 eu montei “Foyer de la Dance” com música de Prokofiev, Nina Verchinina montou “Redenção”, “Uirapuru” montou Veltchek. E fizemos “Giselle”, tudo que a gente tinha feito antes estava sendo refeito. Em 1955 veio (Istvan) Rabovsky e Nora Kovach. “Sherazade”, “Ballet Academy” do Szilard, “Eterno Triângulo”, Dennis Gray. “Salomé” do Rabovsky. “O Tricorne”, Massine montou aqui, “Hino à Beleza” e “Gaité Parisiense”.

A gente encontra isso nos livros?
Nesse aqui, só que está esgotado. “60 anos no Theatro Municipal”. As letras são pequininhas. Outro dia eu telefonei para lá porque está errado. Eles não estão contando, mas foi feito o “Lago”, foi feito o “Giselle” e foi feito o “Coppelia”, antes. Nós fizemos também.

A edição é de 1971. 
Mas está muito incompleta, está muito errado. Porque esse senhor foi embora pra Brasília e ele, não sei se vinha, ou se alguém mandava as coisas pra ele. E esse é de 71 a 90, e tem erros. E está muito vazio. E ele foi embora pra Brasília. Ele assistia a todos os espetáculos, então ele escrevia tudo.

Edgar Brito Chaves Junior.
Pode ser que no sebo vocês encontrem. Mas teve um problema com uma pessoa que eu não vou dizer o nome que reclamou que ele não tinha mencionado o nome dela em espetáculos. Porque no livro diz quem dançou na estreia, não dá pra dizer quem dançou em todos os espetáculos.

Bom, como isso a gente pode falar depois, você pode falar um pouco sobre a rotina do Corpo de Baile?
Tenho que dizer que se trabalhava muito mais do que se trabalha agora. Aula era de dez às onze e meia. Não, onze e quinze, tinha quinze minutos de descanso e ensaiavamos até meio dia. De meio dia às duas era descanso, o pessoal ia almoçar. E depois de duas às cinco. Esse era o horário normal. Você tinha que assinar, se você fazia aula, uma cruz. Ensaio, a segunda cruz. Ensaio da tarde, terceira cruz. Então às vezes tinha o cemitério, porque tinha gente que tinha tanta cruz que era o cemitério. (Pausa) Você sabe que eu estou vendo aqui, com vários coreógrafos, foram 151 ballets que foram montados no Theatro Municipal. E que são perdidos, não tem mais nada. Só tem Quebra-Nozes.

Não tem nada a ver com a nossa pesquisa, mas ao mesmo tempo tem. Porque eu acho que você é uma pessoa tão importante pra dança...
Eu não sou nada! Eu fiz muito mais lá fora. Porque desde 1989, que eu comecei a trabalhar lá fora na Ópera de Paris, eu fiz muito mais do que eu fiz aqui. Por exemplo, “Les Presages”, que foi o primeiro, foram 17 espetáculos. Um atrás do outro. Porque não são três espetáculos e acabou, eles vão fazendo, repetindo, porque tem público.

Eu percebo o seguinte, quando você mostra essa história toda, é que já se fez muito mais no passado do que agora.
É porque essas jovens de agora elas têm pernas lindas. Não dançam, levantam as pernas e rodam. Não sentem a dança. Não têm cultura da dança nenhuma, porque nunca viram nada.

Porque já não se sabe se tem público ou não tem público. Às vezes dão muitas entradas. Por exemplo, o Quebra-Nozes encheu. Mas o Quebra-Nozes é um espetáculo pra criança.
É um espetáculo infantil que é colocado num horário que não é pra criança assistir.
Fizeram uma matinê esse ano.
Mas você não vai construir uma cultura de dança só fazendo o Quebra-Nozes. Porque você não vai comer todo dia filé mignon. Não dá, não tem cultura de dança aqui nenhuma. Os fãs de ballets, assinantes, morreram. O público de agora é um público que vem ver o Theatro Municipal porque está todo douradinho.

 Mas por algum caminho a gente tem que começar.

Você vê o pessoal que veio só querendo tirar fotografia do Theatro. Eles não vieram ver o espetáculo, vieram ver o Theatro Municipal, que é um monumento histórico, tudo bem. O pior é que essas bailarinas agora, pode ser que algumas delas tenham talento, não sabemos se têm. E essas meninas que dançam agora nos primeiros papéis. Você vê Ana traz um público, Ana é uma artista. A Cecília é uma perfeição, traz um público. Mas as outras não trazem público.

Eu acho que tinham que fazer muitos espetáculos para jovem, para escola, para fazer uma formação de público.
Mas eu vou te dizer uma coisa, também tem uma coisa de falta de interesse, porque, alguns anos atrás, eu vi que não estava acontecendo nada, eu fiz onze dvds de duas a duas horas e meia cada um. A história da dança.
Você viu. Pouca gente viu. Porque eu pensei que talvez, o pessoal vendo vários ballets.

Mas lá encheu.
Sim, mas era pequenininho. Porque eu pensei que fazendo uma cultura o pessoal poderia começar a escolher o que gosta mais. Aqui você não tem nada pra escolher.

 Eu tentei levar esse programa, esses dvds pra Unirio, mas não tinhamos como pagar.

Mas não tinha que pagar nada. Nós ganhamos 1000 reais para onze semanas. Eu fiz isso para mim, para fazer alguma coisa.

Ainda tem para comprar esses dvds?
Estão comigo. Agora parece que o Centro Coreográfico está interessado.

E você teria? Porque de repente eu compro lá pra Unirio. Nós damos aula de dança numa escola de teatro.

Eu conheço lá.

Ela foi na reinauguração da sala da Nelly.
Tem uma disciplina que é Dança e Educação, que está solta lá no meio de um currículo, e quando eu dou essa disciplina eu dou alguns vídeos de dança. Vídeos sobre a evolução da dança. E de repente, dependendo do preço eu compraria pra poder passar pros meus alunos.

Vocês podem fazer cópias.
Eu fui a muitas palestras suas, não fui às onze, mas fui a muitas.

Porque agora tem no cinema, mas só “Bela Adormecida”, “Lago dos Cisnes” e “Giselle”. Sempre a mesma coisa. Agora lá (nos videos) tem Balanchine, Massine, Pina Bousch, tem um pouquinho de cada um. Para ter uma noção das coisas. Porque o Corpo de Baile aqui, eu parei em 1980, mas se montou muita coisa e se perdeu. Não é porcaria. Todos que fizessem alguma coisa aqui diferente é uma riqueza. Porque não pode ficar sempre com a mesma coisa. Porque ver “Lago dos Cisnes” ou “Giselle” a gente já viu. E nos dvds e nos filmes é gente maravilhosa que não tem aqui. Com base clássica ou não. Tem que fazer um pouco de cada coisa.

E os ballets que você dançou aqui?
O que eu dancei aqui? Eu fui Giselle, dancei Coppelia, dançou Beatriz Consuelo, depois Tamara Cappeler, depois Sandra (Dieken). Dancei Cisne Negro, do Schwezoff dancei Concerto Dançante, Dom Quixote, Raymonda, grand pas de deux, não foi tanta coisa assim que eu dancei. Quer dizer, não foi o repertório inteiro. Dancei coisas da Maryla Gremo, dancei ballet da Helba Nogueira, dancei ballet do Dennis Gray, me botavam pra dançar eu dançava.

E você poderia contar alguma curiosidade significativa, que aconteceu no dia-a-dia, que você ache interessante falar?
Mas eu tenho que pensar isso porque é tanta coisa e eu não quero fazer fofoca.

Eu saí um pouquinho do roteiro de vocês?
Não, ele não é fixo.
(pausa)
Os programas também não têm data! Você já reparou? Que loucura!
Não têm. E os programas estão lá na biblioteca do Theatro Municipal, mas estão em caixotes.

Nós tentamos ir lá, nós estamos fazendo uma carta para a Carla Camurati pedindo para  ter acesso a essas caixas.

Mas acaba que eles não têm interesse que o Corpo de Baile tenha passado. Não estão lembrando que teve Veltchek, por exemplo, nem sabem que era! Todas nós somos burras velhas, temos mais de 70 anos, eu tenho 89, pra que esconder as coisas atrás de um biombo? Pra mostrar que só se começou a fazer as coisas de 1980 para cá, não!

Isso é um assassinato, é falta de cultura, sabe?

Isso só está desse jeito porque teve passado, se não, não estaria.

Tudo que a Olenewa fez foi a escola, não fez um Corpo de Baile, ela juntou bailarinos para refazer as óperas. Espetáculo de ballet era uma coisa muito primária, era amador. A partir daí, quando já pegou o Veltchek, já começou você a fazer as coisas aos poucos. Uma companhia como o Theatro Municipal também não podia de um dia para o outro virar profissional. Não existe isso.

Agora, você veja bem, se há tempos atrás, que não se tinha a facilidade que se tem hoje, se construiu alguma coisa... Tudo bem que temos um passado recente que está aí meio perdido...

Se construiu, não. Eu falei uma coisa um dia para o Geraldo Matheus: aqui se faz ballet como as mulheres compram hoje vestido de noiva, usa uma vez e guarda. E pela parte econômica, é dinheiro jogado fora!

Ou então quando se vai remontar uma coreografia tem que fazer tudo de novo!


Porque é uma coisa que um ser humano que tem um pouco de cabeça... Eu tenho um conhecido que é professor de arte em Porto Alegre na Universidade Luterana e ele não sabe o que aconteceu aqui. Não sabem, ninguém sabe! Ninguém lembra porque esse pessoal na época não ia ao teatro, ou então estavam em outra cidade. Me dá uma raiva, sabe, porque é querer não saber.

 É isso que você falou, é querer não saber. Isso é o mais grave ainda, eu acho.

O que eu tenho anotado é só até 1980, eu tenho que fazer a pesquisa depois. São 22 anos.

Não tanto! Tudo bem, não se dançava tantas vezes, mas se dançava muitas vezes, nós tínhamos três temporadas. Uma oficial, uma nacional e uma internacional. A primeira temporada era a oficial. No meio do ano era internacional e fim do ano era nacional.

E isso era de Ballet e de Ópera. Tinha temporada nacional, tinha temporada internacional...

Ópera Italiana, Ópera Alemã, Ópera Francesa.









Nenhum comentário:

Postar um comentário